25 de fevereiro de 2013

CHECK-UP

A ansiedade badalava dentro da caixa torácica. Após um Ecocardiograma com Doppler ter acusado uma suspeita de aneurisma entre o coração e o esôfago, o cardiologista solicitou um Eco Transesofágico (ETE), tipo de procedimento endoscópico invasivo, com a finalidade de precisar melhor o que tem se passado em meus órgãos internos. Tentei desligar os fios de alta tensão dos pensamentos antes que um curto-circuito de medo me carbonizasse inteira. O exame estava marcado para as 15h20, depois foi antecipado para as 15h. Primeiramente, haviam me solicitado jejuar por cerca de 6 horas, em seguida, as atendentes atarantadas do hospital alteraram para 9 horas o tempo em que ficaria sem me alimentar nem beber água. Soube ainda que haviam feito confusão, pois era para eu ter comido pela derradeira vez às 9 da manhã. De todo modo, fiz a última refeição por volta das 4 da madrugada de domingo para segunda.

À tarde, meu pai me acompanhou até a clínica, fomos de táxi. O motorista era um senhorzinho baixo, que emitia uns sons que não entendíamos direito, enquanto o trânsito nos atrasava. Lá chegando, fiz os procedimentos burocráticos na recepção, quando descobri que a pré-senha que havia solicitado na sede do plano de saúde tinha sido gerada em código errado por uma mocinha intransigente (vide postagem anterior). Passei as minhas digitais no laser repetidas vezes, até que uma mulher corpulenta com semblante triste, de nome Ruth no crachá, resolveu o problema. Peguei meus documentos de volta e aguardei ser chamada, enquanto explicava o mal-entendido, ou melhor, o mal-atendimento ao meu pai, que se indignava a cada instante, embora nossas conversas sobre a vida e o dia a dia tenham sido edificantes ali, pois dificilmente passava um bom tempo a sós em sua agradável companhia. Senti-me orgulhosa ao vê-lo ajudar uma velhinha com labirintite, levando-a pelo braço até uma sala de cirurgia. Observava as pessoas que entravam e saíam para tentar me distrair um pouco, também estudava a decoração do local, com Nossa Senhora em um suporte de parede lateral e Jesus crucificado bem à frente da porta principal, fazendo jus ao martírio daqueles pacientes. Na TV, passava um filme indigesto estrelado por um astro da música sertaneja. Nojo. Folheei o jornal, que faltava a maioria das páginas.

Esperei três horas para ser atendida, o que me fez prolongar um jejum desnecessário por 13 horas. Pasme! Já estava verde, branca, amarela e desesperada. Meu pai tomou minhas dores e, gentilmente, foi até a enfermeira fazer pressão uma, duas, cinco vezes, até que ela se pronunciou sobre um homem que havia reagido mal ao tratamento, fato que nos obrigaria a esperar ainda mais, causando-me preocupação quanto à possibilidade de ter alguma reação violenta como aquela, de batimentos a mil. Minutos depois, o enfermo apareceu preso a uma cadeira de rodas, cheio de curativos. Todos olhavam para nós tentando entender o que acontecia. Seriam zumbis? Aceitavam calados aquela tortura, os pobres coitados. Tudo bem. No final, era eu quem passava a acalmar meu pai, que não parava quieto na cadeira, saindo para fumar, tomar café e bisbilhotar a sala na qual eu faria o exame logo mais, barrando cada funcionário que passava com uma prancheta, dando meu nome para saber a ordem dos chamados na lista. Ele estava prestes a partir para um atendimento particular, mas, mesmo assim, concluímos que haveríamos de esperar. Disse-lhe que não tinha ido até ali para desistir agora. Em determinado momento, pendi a cabeça, a sós comigo, comecei a chorar, olhando para aqueles velhinhos suspirarem, aguardando o atendimento perverso. Senti profunda compaixão por todos os que já estavam no fim de suas existências e ainda tendo que passar por uma humilhação daquelas... Lamentável! Enxuguei as lágrimas, mãos postas em oração. Eu era a próxima.

A assistente pediu para que eu tirasse minha blusa e pusesse uma bata. Como não havia um banheiro reservado, troquei-me ali mesmo, sem nenhuma ajuda. Deitei na maca, enquanto ela, meio desleixada, ajustava um soro com solução medicamentosa dependurado em uma máquina que emitia bips agudos, depois procurava minha veia certa. Pela tensão, o vaso havia sumido. Enfiou a agulha, que dançava, perto do meu pulso. A circulação não respondeu, doeu. Mudou de alvo, desta vez, injetando na articulação do cotovelo direito. Enfim, a doutora entrou na sala e me fez virar para o lado esquerdo, encostando meu queixo no pescoço. Conversou comigo para que eu relaxasse, enquanto passava um gel no meu peito, realizando um prévio ultrassom e descobrimos ser vizinhas, por recordar do meu pai a passear com nossa cadelinha pelo bairro. Ela contou que tinha três poodles, mas que haviam morrido. Mudamos de assunto. Outro médico adentrou a saleta, deu um 'boa tarde' apressado, ele iria monitorar as imagens de minhas vísceras pelo computador. Puseram um anestésico em spray bem amargo na garganta e uma espécie de chupeta perfurada em minha boca, a fim de que eu não mordesse a sonda a ser enfiada goela abaixo, logo em seguida. Senti-me um gado no açougue. Quanto mais eu deglutia aquela borracha, mais tinha ânsias de vômito. Como não havia nada em meu estômago, só arrotava e expelia saliva gosmenta. Toda vez que me debatia na maca, o doutor, impaciente, recomendava: - segura a onda, senão assim não terá exame! Procurei respirar pelo nariz e fixar meu olhar em um só ponto, rezando. Os olhos lacrimejavam pesado sobre o lençol. Terminado, cuspi tudo. Aquela agonia deve ter durado uns dez minutos.

Fui chamada para olhar na tela minha veia dilatada. De fato, tenho um aneurisma gordo entre o esôfago e o coração. Estava grogue, mas lembro que cheguei a perguntar se teria uma boa qualidade de vida, com exercícios físicos, sem maiores preocupações. Senti ocultarem algo naquele discurso de que eu iria ficar bem, por ter sorte do diagnóstico no início, entretanto, já que terei a palavra final do meu clínico geral, aguardarei os resultados e uma análise com maior propriedade. Voltei para a casa um tanto triste. Minha mãe preparou um desjejum reforçado e fui repousar. Com o tempo, o efeito da anestesia foi passando e senti minha deglutição debilitada. Não dormi direito aquela noite também por conta dos esparadrapos incomodarem o posicionamento do braço e sem poder mexer direito o pescoço, pelos movimentos bruscos da sonda. O que me acalmou foram algumas mensagens positivas recebidas por mensagens de celular e pela internet, especialmente por uma amiga, que está na Índia, ter repassado o contato de seu guru, o Dr. Krishnadas, versado em medicina aiurvédica. Ele analisará meu caso de modo mais suave. A alopatia ocidental é, de fato, estarrecedora. Que dia!

22 de fevereiro de 2013

JARRA DA FELICIDADE

A preguiça já me ninava há vários minutos e o tédio punha-se a soprar meu corpo com o intento sórdido de apagar o restante da vivacidade, quando, miraculosamente, miss Elizabeth Gilbert ressurge nas minhas entrelinhas ciliares como quem abre um cortinado de miçangas e sorri. Cascaviando sua Fanpage esta tarde, encontro relatos anexados a fotografias de potes repletos de papeizinhos coloridos. São pessoas de diversas idades, sexos e nacionalidades agradecendo a simples e fantástica ideia de criar uma Happiness Jar, espécie de reservatório pessoal para momentos felizes. Prontamente, encontrei um recipiente de vidro com tampa, sem uso, no armário da cozinha. Pus um laço de fita verde-limão e batizei a Happy Jar de esmalte rosa com purpurina e bolinhas amarelas. Falta só tirar foto e publicar no mural de Liz o resultado da brincadeira, - lá aproveitarei para exercitar, também com ludicidade, o meu inglês.
Happiness Jar Project consiste em fazer com que cidadãos comuns se apercebam melhor de seus dias, barrando a trivialidade das horas, ao armazenarem os detalhes mais alegres por escrito, registrados com data, em pedaços de papel. A funcionalidade deste gesto singelo, ao final, proporcionará um sentimento de gratidão perante o calendário da existência. Terapêutica: recomenda-se abrir a jarra quando estiver bem cheia, nas situações em que se necessita curar alguma dor, como quem toma pílulas sorridentes sem apelar para o ácido lisérgico, bastando-se da própria dose espirituosa dos fatos. Assim, ao se ler fragmentos de boas lembranças, desembrulhando cada iluminaçãozinha dessas como quem desenlaça um presente ou retira a embalagem de um brigadeiro, pode-se ter o espírito mais elevado, acriançado e benevolente. Recomendo.

20 de fevereiro de 2013

RECORDAÇÃO


Grata, gratíssima, fui presenteada por um amigo de longa data com palavras que acredito serem, poeticamente, proféticas. O autor do belo texto que se segue é o rapaz da foto abaixo, tirada provavelmente em 2004, numa palestra de um guru indiano na Universidade Estadual do Ceará, onde cursamos Letras juntos. HARE KRISHNA!

Alguém acabou de dizer que você estava aniversariando e de imediato me veio à mente imagens que percebi serem um mini-conto em prosa poética com um título longo e sem sentido. Sim, tudo isso aqui é um título.

                                                                                                      
Mas faz todo sentido, você, parada, segurando algumas palavras entre os dedos trêmulos, mas firmes, prontos para abrir e deixá-las despencar no mar ou num abismo com o mar lá embaixo, não sei ao certo, essa parte na minha mente ficou meio escura. Por conta dessa escuridão semântica também não sei ao certo se é o nosso amigo ou alguma outra pessoa de aura púrpura que vem e se apieda das palavras, intercede por elas. Não as abandone. E se ninguém mais tiver o mesmo feeling para chegar a criá-las? Isso é um aborto! Você está cometendo um aborto! Não, você diz, com uma expressão de bêbada cansada com tímpanos delicados, não. As palavras já nasceram. Não é um aborto. É um assassinato mesmo. Você, Paola, acredita com fervor muçulmano e sensatez budista que as palavras não pertencem a quem cria, nem a quem as recebe, mas ao tempo e só ao tempo. E não é tempo. E então você lança as palavras lá (?). E chora. Não há mais ninguém ao redor. O cara de aura púrpura não esperou para testemunhar o que sabia ser inevitável. Uma virada de esquina e você já nem lembra mais do fato. Bate uma fome e o dilema poético que há pouco parecia ser vital dá espaço a um outro: comer salgado na próxima lanchonete ou esperar pelo almoço.
 
Muito tempo depois, muito mesmo, tanto que eu já nem estarei mais aqui, você abre um livro, uma antologia de poetas africanos e passa as páginas meio desinteressada. Hoje em dia a África não passa de uma referência de dor, lamento e pobreza, mas daqui a alguns anos, espera só, vai ver, a poética abissiniana vai estar em todas as prateleiras ao redor do mundo e as pessoas finalmente vão entender que Rimbaud não trocou a poesia pelas savanas. Ele foi morar na poesia. Bem, voltando a você (a propósito, parabéns), lá está você sentada num banco de praça que fica em frente do prédio onde você mora em Bremen. Depois do início da Guerra Civil, que é mais uma guerra cultural, você abandona o grupo literário do qual faz parte e sai em excursão pela Europa com uma banda Indie. E está em Bremen agora. Com a antologia nas mãos, os textos metrificados começam a chamar sua atenção mais do que a paisagem cinza e desolada da praça e uma aqui, outra ali, você encontra palavras que fazem sentido para você. Mais, que são suas. Você sequer lembrava. Ali estão, vivas, reencarnadas. 
Talvez nada do que eu tenha escrito aqui faça sentido para você. Nem para mim. Mas em si, elas, as palavras, se bastam. Elas viajam pelo éter do universo de forma imperceptível, são absorvidas pelo corpo de alguém “inspirando” ideias para desenvolver, seja pelos poros  pelas narinas, pelo cu ou pelo bico do peito, sei lá, e, se não encontram vasão, são “expiradas” e voltam a fluir até encontrar o hospedeiro que possa lhes dar concretude. Não matamos as poesias das quais desistimos. Nem somos proprietários das que compomos. Apenas tentamos lidar com as palavras que nos invadem e, na impossibilidade de sustentar as mais pesadas, largamos tudo no primeiro lá pela frente, porque mais importante do que uma poesia magnificamente enquadrada é a liberdade, dela e nossa. O tempo, pesado por natureza, que se encarregue do resto e transforme as palavras em algo mais ou nos prive dela no cárcere da existência muda.
 
Uma vez mais, agora oficialmente, parabéns.

18 de fevereiro de 2013

DORME

A boca aberta o tempo todo, não de estupefação. Bocejos. O corpo quer apagar os poros como se fossem cigarros na escuridão de um asfalto pisado por pesados coturnos. Globos oculares espreitam no pretume qualquer movimento. Há o perfume de uma vela acesa e a sensação de anjos da guarda ao redor da chama. Há uma espécie de apaziguamento vindo da chuva que nos põe mais dormentes ainda. O colchão draga pensamentos para dentro dos sonhos feito um saco esvaziado, grudado por um liquidismo asfixiante. Afasia e fastio. Os miolos viram pequenas esferas de chumbo a ricochetear dentro do crânio. A fantasia do dia são pijamas. A casa silenciosa chega a por medo nos vizinhos. Necessidade de isolamento no momento em que todos detalham o ínfimo e desprezam o infinito.

16 de fevereiro de 2013

PARA O BEM

Quem pretende me decifrar só com o olhar acaba por perder todos os outros sentidos. Estou de nova idade, mais magra, cabelos em luzes, mas é o âmago que me põe de pé ainda, um tanto amargo, tal um bom café. Mesmo assim, tenho aprendido que a vida é doce - como diria Lobão - e que se deve viver apesar de - como diria Clarice. O "apesar de" só, com um ponto final, que diz tudo em absoluta paisagem de se ser, simplesmente, o que se é. Sem interrupções, interrogações ou afirmativas.

É na pausa do silêncio que pontuamos nossas digressões sem agredir o outro, a não ser a nós mesmos.

Já quis fugir, levar na bagagem as flores do dia, os encantos primaveris, contudo a existência me descoloriu a face rosada com aqueles tons de cinza que não estão na moda. Nunca fui de seguir estampas, afinal. Talvez eu precise mesmo é paisagear-me com outras nuanças, deixar descascando a tinta na parede até vislumbrar o que há por detrás das maquiagens à base de mãos de cal. Mundo cão. Até os cães são afáveis no mais árido latido, dentes afiados soam mais confiáveis. As pessoas mordem pelas costas, chafurdam o lixo, viram plateia da discórdia, dão corda para os títeres se enforcarem com suas próprias línguas. Eles acham que venceram, lambem-se nas patas tal Judas se fazendo de Pilatos. Maria Madalena abusou do Cristo, foi excomungada. O Papa até renunciou, caíram meteoros, chuvas e pragas foram rogadas. Deve ser o fim do mundo para a maioria, já eu começo a rodar agora, tonta do meu próprio hálito.


Parabéns para mim!

14 de fevereiro de 2013

VALENTINUS

Não sabiam se eram as pernas que escancaravam bocas ou se as bocas que escancaravam pernas. Carnudas todas e todas sabiam ir longe. Vir também. Vagarosas, aceleradas, alternando os pulos que davam entre as farpas, doando-se na levada febril sem querer nada, a não ser o sangue a pulsar e enrijecer, suor, saliva... Frêmito! Em líquidos doces banhavam-se de prazer. Estavam presos conscientemente por um mecanismo seminal, movidos por jorros capazes de fertilizar vastos campos. Plantavam-se por todos os lados, colhiam-se feito frutas suculentas, lambiam a face escorreita do outro com suas línguas enchameadas. As pupilas propunham-se um duelo. Dentro dos poros, o mais puro mel. Desta vez, a abelha rainha não intencionava matar o zangão após o ato. Quem mais apanhava, vencia. Quem mais apalpava, gemia. Quem mais se derramava, cuspia. Quem mais se envenenava, engolia. E a goles grossos, golpes grosseiros, e nos travesseiros, os cabelos grudados. À meia luz, os lençóis esculpiam uma excitação renascentista, havia musa entre os nus e poesia.

12 de fevereiro de 2013

LUFADAS

Frestas fechadas, iluminação bruxuleante. O ar se movimenta confinado do lado de fora. As paredes cochicham umas com as outras tumultuando a circulação dos pensamentos. Os livros se apertam nas prateleiras feito jovens dentro das festas de arromba, feito adultos em repartições públicas prestes a arrombarem portas. Ninguém se abre, as capas são duras, algumas edições de luxo, outras dignas do lixo. Cheios de histórias mal contadas, páginas arrancadas, capítulos corroídos por uma verossimilhança amarela. Hipócritas. Um louva-a-deus pousa sobre a cama, chama para o amor enquanto o lençol reclama em aspereza, com medo do bicho voador que com as mãos postas verdeja em esperança.

Janelas abertas, luzes acesas. A brisa propõe ao cortinado uma dança. Os vasinhos com as flores cor púrpura artificiais forjam a alegria sobre a cômoda. O comodismo da televisão desligada faz produzir o silêncio, não fossem os carros a grasnarem pela longa avenida abaixo do apartamento. Distância. O que antes era sofrimento, transforma-se em distração, recolhimento. Momento da colheita atenta dos frutos, com o descarte das maçãs apodrecidas ou violadas por lagartas. Estar perto da obra pintada reduz a sua real dimensão, é de longe que se perde o olhar das meninas dos olhos de todos os outros. Os laços de seus vestidos desatam enquanto elas brincam ao relento. Rodopiam, caem, choram. Fazem tudo para secarem as lágrimas, extraindo os ciscos da vida com os cílios das horas. Nada mais esperam.

10 de fevereiro de 2013

PROJECIOLOGIA

Quando se sonha com o céu cenográfico do Truman Show significa que a realidade se desdobra entre mundos paralelos? Então, certa noite, estive fora do corpo e fui conviver com seres de feição caucasiana, indígenas e extraterrestres. O meio de transporte utilizado era uma sonda marítima no formato de um projétil que, por vezes, alcançava a superfície com uma carga abundante de peixes prateados e de grande porte. A noção de tempo era completamente variável, podíamos passar duas tardes em um só dia ou noites com sol. Um sol agradável, o clima fresco, apesar da ausência de vento. Havia um conjunto residencial composto por casinhas de taipa bem simples, porém extremamente modernas por dentro, com cozinhas equipadas, todas em aço inox. Adentrei uma delas e conversei, sem dificuldades de ordem linguística, com um alemão que portava uma faca de serrinha como se fosse seu cartão de visitas. Devia ser cozinheiro. Era ranzinza, careca, magro, alto, usava camiseta regata e bermuda brancas. No início do contato, sentia um pouco de medo, devia ser por conta do objeto pontiagudo apontado em minha direção quase sempre. Logo, interpretei aquele utensílio doméstico como proteção, tal a espada de um guerreiro-guardião.

Freud, certamente, analisaria as implicações fálicas do meu sonho, por isso prefiro enfatizar o ponto de vista holístico de Jung no que compete à projeção astral. Um exemplo de simbolismo religioso ocorre no CandombléOxum é a orixá da beleza, do amor e da prosperidade, e em seu status de guerreira com ligação a Oxóssi, tradicionalmente, ela traz uma alfange (ou adaga) e um ofá (arco e flecha) simbólicos.

Havia muitas crianças, a maioria sempre próxima a mim, quase me cercando. Puxavam-me pelo braço para mostrar as coisas. Eram indiozinhos barulhentos e loirinhas que pareciam fadas, de tão leves. Brincavam entre borboletas gigantes. Um dos meninos, o mais hiperativo, chorava por querer que eu contasse as histórias do "meu planeta" em volta de uma fogueira, enquanto a mãe o forçava ir para a cama, dormir. Os adultos eram reservados, comedidos, alguns zelavam pelo local como se sentissem invadidos, já que eu era uma estranha no ninho. Aos poucos, tanto eu quanto os habitantes dali, íamos nos acostumando com a presença uns dos outros. Era uma rotina intensa, pois os via trabalhando, correndo de um lado a outro, carregando latas d'água nos ombros. Alguns detalhes foram apagados da memória ao acordar, mas acredito ter despertado quando me perdi entre vielas pouco iluminadas.

Nada como uma viagem astral para quem resolveu passar o carnaval em casa. Uma fuga dos burburinhos  existenciais com experiências espirituais também acrescentam. Deixarei os céticos acharem que tenho provado do ópio do divino ultimamente. 

8 de fevereiro de 2013

ORAÇÃO

fernando vicente
Limpeza de alma há quando a lavar o coração é posto.
Sorriso se abre à contradança em favor dos vendavais.
Toma a mão da liberdade, é tua noiva de véu no rosto!
Saber a essência do perfume basta a quem ama assaz.

Perdoar o sonho desfeito fará perdurar teu bem-querer.
Propaga todo o fogo da juventude em abraços e beijos.
Apaga no giz da lembrança quem te quer sempre longe.
Vira monge ou caia de boca, já tens a faca e os queijos.

Ouça o silêncio da tua concha interior, com amor e mar.
Amarre o rancor, dê cor ao teu paladar, decore a vida.
Sem que te iludes, beba do vinho da amizade: - saúde!

Benesses te iluminarão os caminhos entre trevo e treva.
É prece, não pressa, só corra risco se tiveres coragem.
A voragem do infinito te espera, arruma logo a bagagem.

6 de fevereiro de 2013

INDIFERENTES

Imagem pinada
Detesto a frieza que não seja a de conservar alimento ou bebida.
Até sangue de barata ferve e goza, reluz e sente, sabe ter mais vida.
Há muita gente fechada se fazendo de porta, perdendo o trinco lá dentro.
Sem senso de centro, desloca-se fácil pelas extremidades do banal.
Forja ser mal entendida para acusar o são de louco e escapar na surdina.


Seres perversos!

Não sentem orgulho dos entes queridos, nem dos dentes; poucos sorrisos.
Chorar jamais, bastava um soco para abrirem-se ao menos os supercílios.
Triviais, porém podem debruçar-se sobre profundos compêndios niilistas.
Almas sonolentas e solitárias a recusarem voos e ninhos - todas egoístas.
Desistiram de ir, de vir, de cumprir os deveres por paixão: razão teriam?

5 de fevereiro de 2013

ANDEJANTE

Nunca me contentei com pouco, por acreditar que muito eu ainda mereça, mas talvez eu não tenha feito o suficiente para merecer tanto. Paciência, o que me pertence já está guardado, quando não houver espera alguma, chegará, talvez embrulhado numa caixa de sapatos ou será o próprio salto que terei de dar a abrir meus próprios caminhos: presentes-surpresa são sempre os melhores! Por ora, enquanto posso, desvencilho-me das obrigações cotidianas com lampejos poéticos. Tirei esta tarde para concluir a leitura de Comer, Rezar e Amar no parque, 342 páginas de angústia, desejo, viagens, descobertas infindas sobre seres humanos e transcendência muito bem degustadas. Eis uma das razões pelas quais estou tão conectada ao meu íntimo,  religiosamente. Nada de água com açúcar, tem muito fel é fé ali a serem processados pelo organismo de quem se leu, identificada. Desabei a chorar em tantos momentos como se tivesse violado o meu próprio diário guardado dentro de mim e de tantas amigas e amigos que se sentem ou se sentiram ou ainda se sentirão assim, pretendendo marcar um encontro consigo mesmos.
Pisei as folhas das árvores, a caminhar por alamedas antes do sol se por, buscando por um cantinho só meu. Sentei-me sobre um longo banco de alvenaria em frente a um anfiteatro, próximo a um senhor que parecia debruçar-se sobre uma bíblia de capa dura, das grandes e com pinceladas douradas na parte de dentro. Centrei-me por poucos minutos na posição de lótus mal-feita, fechando os olhos para absorver melhor os sons do ambiente: pássaros cantavam em seus idiomas diversos, o vento balançava galhos, crianças gritavam fino, passos de caminhantes, a água a jorrar por debaixo. Logo, senti o incômodo do calor e dos insetos celebrando minha pele, o que me fazia dar tapas no ar para enxotá-los. Já de pálpebras abertas e livro em punho, deitei o corpo na lisa pedra. Descansava a vista entre um capítulo e outro para mirar o céu, azulzinho, quase sem nuvens. Devia ter passado meia hora ali, até que dois garotos começaram a jogar bola sem se importarem com minha reservada presença, além de um carro parado do lado de fora que alteou o volume do som num forró bizarro. Espantalhos! Procurei outro local, irritadiça. Acomodei-me num espaço mais assombreado, recostando-me num pilar quadrado revestido por tijolinhos. Um rastafári também lia, do meu lado, revezando com uma manga que, com gosto, chupava. Duas senhoras que caminhavam a pisadas curtas, em círculos, roubava um tanto da minha atenção. Aqueles meninos futebolistas mudaram a brincadeira e passaram a arremessar graviolas um contra o outro, no esconde-esconde entre as plantas. Pareciam me seguir só para inquietar. Foi então que lancei olhares como quem atira laser contra inimigos em potencial. As formigas me atacavam mais vorazes que antes. Se estivesse de bom-humor, pensaria que isto estava a ocorrer pelo teor da doçura em meu sangue, mas acabei levando para o lado pessoal menos astuto, com a sensação de que até os bichos contra mim estavam. Resolvi fazer uma caminhada.

Gatinhos brancos de olhos azuis entre mestiços, pretos, todos se aglomeravam em torno de uma ração azeda, doada por alguma velhinha de bom coração e pouco asseada. Caules emanavam um cheiro bom de chá, em compensação. Uma mulher com aparelho volteando a coluna fazia seu jogging, obrigatoriamente; um rapaz bonito observava da minha camiseta dos Smiths até as pernas, tentando entender porque eu não usava tênis e carregava um romance na mão; um pai colocava sua loirinha de franja no escorregador com orgulho; compadres conversavam sobre morte e vida, dando espaço para as fofocas saudáveis. E eu captava tudo com minhas antenas predispostas, até tomar o rumo de volta, antes do anoitecer. No portão de saída, avistei uma moça bem debilitada pelo que considerei se tratar de abuso de drogas, pela magreza característica dos usuários do crack. Ela estava folheando uma Bíblia Sagrada de encadernação mais simples que a do senhor mencionado anteriormente. Fui embora dali com a certeza de que todos, de maneira ou outra, buscam o seu norte.

4 de fevereiro de 2013

HIGIDEZ

Conforme as dores cessam, a inspiração evapora. Pode ser só impressão. Nem é todo dia que o santo está presente, o mentor te faz ocupar com coisas novas. Trabalhei vertendo uma entrevista falada para texto. Era sobre educação, mais especificamente tratava de letramento digital e a adequação de alunos a novas tecnologias associadas ao ensino de língua portuguesa. Terei mais transcrições ao longo da semana, o que me rende em torno de trinta páginas escritas. O cansaço não me venceu palavrear também por aqui, embora meu foco esteja disperso. Sei e não sei sobre o que falar, mas mesmo assim o faço, como um hábito a me aparar alguma aresta. Virou diário. Organizo-me em meio ao caos traçando a suma dos meus dias. Programei-me a ir fazer meditação no parque, ao final da tarde. Acabei dormindo após a leitura de um capítulo que me ensinou a meditar sem sair do lugar, apenas me posicionaria sentada sorrindo, imaginando meus órgãos sorrirem também. Comecei a achar graça sozinha e deu sono. Fui despertar quase sete da noite com a sensação de que havia andado por outras paragens cósmicas. Sonhei que queria defender meu ponto de vista em uma discussão sobre preferências musicais. A lição tirada do sonho foi a de procurar não desgastar energia com circunstâncias banais, haja vista ter conseguido racionalizar mesmo adormecida sobre meu próprio comportamento, refreando ações. Foi como ter desligado a TV no momento exato, seletiva perante minhas escolhas, sem precisar ser demasiadamente ferrenha com tudo. Parar de polemizar é amadurecer, concluí.

Preparei um hambúrguer no microondas e tomei a Coca-Cola que sobrou do lanche de domingo com os amigos. Nada adiantou ter recusado a carne do almoço, acabei me envenenando com Fast-food. Após uma dor de cabeça a indicar estômago sujo, tomei aspirina com sal de frutas, lembrando da conversa que tivemos sobre manutenção da saúde. Na mesa, eu era a única mulher dentre três rapazes: o que havia sofrido Acidente Vascular Cerebral aos dez anos de idade era o que mais comia, estava fora de forma e recebia conselhos do mais falante da turma, um magrinho que tinha diabetes. Ele dizia convicto: "não queira tomar duas injeções de insulina por dia como eu, vá se alimentar direito e praticar alguma atividade física, homem!" O outro, mais reservado, comentou sobre o falecimento da mãe com bastante frieza. Ela precisava continuar um tratamento contra alguma doença séria, até que parou de tomar os remédios prescritos e, quando tomava, ministrava-os com muita bebida alcoólica. Adeus. Em casa, minha coluna doía enquanto digitava no computador. Tentei uma posição da Yoga no chão da sala e tive palpitações. Lembrei do guru de uma amiga que está na Índia, que me indicou Ayurveda, a fim de tratar dos males causados por nossos desequilíbrios fisiológicos e agravados pela alopatia ocidental. Na mão desses médicos daqui somos como cobaias, nas quais eles testam, a cada dia, novas instrumentalizações para aperfeiçoar suas parafernálias. Prefiro o efeito curativo proporcionado por ervas, massagens, bons pensamentos e ginástica ao ar livre. No método aiurvédico, muito mais barato que o convencional, é tratado o indivíduo e não a enfermidade em si. Quem dera se compreendêssemos o real sentido de evolução.

Imagem pinada

Será que viro vegetariana?

3 de fevereiro de 2013

REVELADOR

A cabeça da gente parece um mata-borrão depois dos sonhos. Há os que ficam impressos em detalhes visuais, os que desaparecem por completo fazendo-nos acordar em suor ou pranto e os que deixam rastros em sensações inexprimíveis. Noite dessas, sonhei que alguém sentia uma dor de barriga repentina e me pedia para esperar. Adentramos uma casa conhecida. Este ser que me acompanhava procurava uma desculpa para disfarçar o incômodo de ter que usar o banheiro alheio, em contrapartida, assim que viu abrir a porta da residência escancarada, só lembrou de sua urgência fisiológica, mais nada. Mantive-me no quintal, perto da entrada, quando uma mulher que me parecia ser pessoa amiga, mas só no plano onírico, abordou-me perguntando pelo meu comparsa. Acabando, a incumbência de dar alguma justificativa esfarrapada passou para mim, que, ao enrolar a língua, afirmei que ele estava resolvendo assuntos de negócio lá dentro com um fulano de tal. 

Passaram-se dez minutos em minha contagem interior, quando, dentre os visitantes daquele local identifiquei um grande amigo, já do plano real, que não vejo há certo tempo. Era como se tivesse passado vinte anos desde o nosso último encontro, pelo abraço tão radiante recebido. Ele me levantou do chão em seus braços, perguntando como eu estava. Bem eu não aparentava, já chateada com aquela demora toda, assim, contei-lhe umas poucas novidades. Enquanto esse meu amigo se apresentava com suas feições preservadíssimas em beleza, dado o tempo transcorrido, sem cabelos brancos nem rugas, feito um Dorian Gray, por outro lado, surgia sua esposa e seu filho. O menino que contava quinze anos no sonho, mas cinco aqui na realidade, causou-me espanto por parecer bem mais velho que o pai. Tal um bizarro caso à la Benjamin Button, o garoto em corpo de ancião brincava com os seus carrinhos, sem que eu acreditasse no que via. Para complicar mais a situação, a mãe dele veio em minha direção com uma cara de sofreguidão que melhor poderia definir como anomalia. Ela tinha um pescoço fino que segurava sua cabeça minúscula e enrugada, como a de uma tartaruga. Senti uma compaixão tão grande por dentro, com medo de demonstrar minha estupefação, que tentei agir com o máximo de naturalidade possível. 

A sensação era a de que eu arregalava os olhos por tamanha pasmação. Aquela mulher deformada me puxou pelo braço como que aliviada por ter encontrado alguém para conversar suas agruras. Soava tal uma pobre coitada que havia perdido a própria identidade pela doação exacerbada dentro do casamento. Ela me aconselhava de uma forma tão desesperada a não me deixar ficar à míngua daquele jeito por causa de um marido e um bebê, que naquela hora meu companheiro voltou de onde estava, procurando por mim para irmos embora. Era como se houvesse passado meia hora até que ele reaparecesse. Meu amigo foi cumprimentá-lo, ambos  esbanjando simpatia. Então, fui me afastando aos poucos daquela mulher com muito frio na espinha. Ao sairmos de lá, perguntei se ele havia recomposto sua flora intestinal e obtive uma resposta aliviada. Foi quando meu íntimo passou a doer e então acordei meio cansada.

2 de fevereiro de 2013

SINAIS

Ontem à noite, em silêncio, dentro do carro parado no sinal vermelho, avistei outro automóvel, que surgiu logo à frente, com a seguinte frase adesivada em seu vidro traseiro: 

"O pouco com Deus é muito, o muito sem Deus é pouco (nada)."

Após a leitura, essas palavras simples inundaram meu ser, enquanto eu repetia internamente para não esquecê-las, como um mantra. Creio terem cabido esses dizeres a mim bem direitinho, pois ultimamente ando tão ansiosa por almejar tantas coisas, sem me aperceber do que já me circunda em abundância, que momento mais oportuno como este não encontraria para defrontar-me com aquilo. Não definiria esse sentimento do "menos é mais" como uma espécie de acomodação, e sim de contentamento, preenchimento do vazio existencial tão recorrente em nossa sociedade abstêmia da paciência. Uma busca desenfreada por estados traiçoeiros de pacificidade pode gerar desconforto quando faltar energia no momento em que esta, de fato, convier.

Em outra circunstância, poderia desdenhar daquelas letras coladas, até porque sempre me incomodei com frases-feitas adornando veículos, acho o cúmulo do mal-gosto. Placas de caminhão, tudo bem, são mais tradicionais e bastante criativas, contudo a questão aqui não é discutir se são meros acessórios démodés. Desde que me vi mais espiritualizada - e isto subentende-se como religada a uma força superior, não necessariamente a uma religião imposta -, tenho sido fisgada por sinais onipresentes que não deixo escapar. Comentei com minha mãe sobre o provérbio, o qual já conhecia, dizendo ela com a propriedade de quem já viveu muito, tratar-se de um dito velho. Se brega, chique ou obsoleto, não me interessava, mas sim se estava sendo aplicado divina ou devidamente. No fundo, parece ninguém estar contente, por isso diversas são as distrações que inventamos a fim de domesticar o ego. A minha ocupação tem sido a leitura e a escrita em suas múltiplas vertentes. Quando me vejo cheia de uma energia que não me cabe direito, começo a jorrar em expressividade. Por mais que não seja lida, a intenção maior aqui é administrar o equilíbrio, não apenas a vaidade. Reescrever os dias me proporciona criar vínculos com o tempo, tentando manter a ampulheta deitada formando um número 8, uma espécie de infinitude mágica na clausura desse corpo.

Estou lendo um livro sobre jornada espiritual. É como se estivesse sempre sentada com a espinha ereta, prestando atenção à minha respiração, na fluidez do sangue, no batimento dentro das veias. Enquanto leio, fecho os olhos interiores e faço como um iogue irlandês sugeriu: imagino o universo como uma imensa máquina giratória na qual queremos ficar perto do centro, no eixo da roda e não nas extremidades, porque ali os giros são mais violentos, expostos e se pode enlouquecer com isso. O eixo da calma fica no coração, onde Deus reside. Tenho plena consciência de que devemos parar de procurar as respostas no mundo ou nos outros seres e retornar a esse centro sempre que se quisermos encontrar a paz, em qualquer lugar. Não é mudando de casa que meus ares podem ficar mais despoluídos, até pode ajudar passar um período no miolo da natureza, afastada dessa poluição generalizada, mas antes devo estar despoluída em meus próprios canais. Quando abro as pestanas logo após essa religação, geralmente me harmonizo. Dói um tanto no começo, como quando tiro os óculos escuros estando de frente para o sol. Nada há que a temporalidade não possa curar, até as feridas proporcionadas por essa iluminação demasiada, caso eu estiver equivocada em relação à minha descoberta infinita. No fundo, lá dentro, eu sei que estou certa. Espero que isto sirva a quem estiver buscando a si.

1 de fevereiro de 2013

A PASSEIO


Walking House , 1994  by Laurie Simmons  Photograph
Uma decisão vespertina, de repente. Sentia-me prisioneira do meu próprio quarto em seus ares condicionados, então elaborei uma fuga às três horas da tarde com destino a um hospital. Tinha de pedir autorização para fazer um ecocardiograma transesofágico. Resolvi ir caminhando, já que era próximo de casa. Sol a pino seria cliché demais para definir a brutalidade do calor que fazia, prefiro dizer que estava um sol de estraçalhar com os pinos da gente feito uma ígnea bola de boliche. Vestia um short jeans, uma blusa clara de botões, sandália e óculos escuros para não derreter as lentes de contato. Na bolsa coloquei toda a papelada necessária, documentos, chaves, batom, caneta, chicletes, dinheiro, aparelho celular e um livro. Cumprimentei o porteiro, que me respondeu abrindo a porta mecanicamente. Segui ziguezagueando entre ruas até chegar à linha reta que me levaria ao destino certo, caçava sombras e calçadas regulares. Casas antigas com suas pinturas bonitas me chamavam a atenção, remanescentes de uma Fortaleza pacata em um bairro tipicamente residencial. A sensação nostálgica era logo quebrada com o barulho das oficinas de automóvel, pelos berros vindos de algum estabelecimento comercial. Uma mulher morena com porte robusto parecia descansar o almoço em uma cadeira branca de plástico, com fones no ouvido, vendo o movimento dos carros. Cogitei dar-lhe "boa tarde", mas não o fiz, desmotivada com a educação da maioria das pessoas daqui, aliás, com a falta dela. Do outro lado, um homem era todo sorrisos, mas percebi que a intenção poderia ser outra e não correspondi, resguardando-me em minha sisudez inofensiva. Passei por um posto de gasolina com beberrões conversando alto e ouvindo uma música mais alta ainda, a vibração, por sinal, era baixíssima. Na verdade, era uma bateria repetitiva, com grunhidos insuportáveis emitidos por um suposto cantor, em minha análise simplificada das características do forró atual. Sinal fechou, atravessei a faixa de pedestres de uma das avenidas mais movimentadas e logo pude vislumbrar a altivez do prédio verde no qual entraria.

Fiquei maravilhada com as árvores lá dentro, com a forte brisa proporcionada da qual tanto necessitava em refrescância. As palmeiras pareciam me dar as boas-vindas. Procurei pela recepção geral e logo perguntei à atendente se ela poderia me conseguir uma pré-senha, entregando a requisição do meu exame com a carteira do plano de saúde anexada. Pedi algumas informações, enquanto a moça me respondia monossilábica. Era bonita, jovem, mas tinha olheiras profundas. De tão mal-tratada, parecia não ter dormido direito por várias noites. Observava suas mãos ao digitar meus dados no computador, usava um tom azul-pálido nas unhas compridas, mas uma delas, a do dedo anelar, faltou ser esmaltada. Senti tanta pena que quase pergunto se ela precisava de ajuda. Ao mesmo tempo, achei uma negligência permitirem que pessoas como esta, sem vitalidade no rosto, atendessem a pacientes. As pessoas já chegam ali doentes, mereciam minimamente um sorriso nos lábios com um olhar receptivo. Ao redor, muitos senhores e senhoras, alguns rapazes enfadados, todos à espera de uma boa notícia. Resolvida minha situação com os papéis, sem muita coisa para fazer, fui caminhar pelo jardim. O vento me lufou uma sensação agradabilíssima, sentei-me num banco e retornei o telefonema de um amigo. Um velhinho sentou-se do meu lado. Geralmente, fico acanhada de falar ao telefone com alguém por perto, mas foi tudo bem rápido. Desliguei e abri sobre as pernas o meu romance a fim de ler alguns capítulos, por mais que uma voz interior tenha me pedido para puxar conversa com aquele senhor pacato. Enquanto lia, meus olhares de esguelha denunciavam um cochilo do vovô, que recostou sua coluna débil, porém de forma ereta, numa espécie de meditação com os braços cruzados. 

Dei mais umas voltas por ali, observei médicos em seus jalecos de branco impecável transitanto entre suas emergências, enfermeiras em seus uniformes esverdeados auxiliando casos, tudo muito calmo. Aquele ambiente não me fez sentir o cheiro da morte pela primeira vez, do contrário, trouxe-me bastante tranquilidade. Passados bons minutos, refiz o meu trajeto. O olhar inverteu-se para uma mudança de foco a novos coloridos. Trânsito em alvoroço, obedeci aos sinais novamente. Avistei  trabalhadores acimentando um muro alto e tive leve vertigem. Uma loja de usados exibia geladeiras enferrujadas na porta. O calor parecia aumentar baforando das paredes. Naquele momento, um cachorro manco meio mestiço entre Pitbull e vira-lata vinha na minha direção, por alguns segundos, fez-me pensar em mudar de calçada, mas confiei no ritmo dos meus passos. Respirei fundo. Ele passou. Olhei para trás e senti compaixão por aquela pata arrastada, porém demonstrava força tremenda, talvez por já estar acostumado com a tamanha urbanidade casca-grossa imposta para ele. Eu estava quase chegando em casa, quando desacelerei e optei por entrar num café. Pedi chá mate gelado, brownies, degustando mais do meu livrinho companheiro. Estava feliz, sentada em uma linda mesinha cercada por um gramado, de frente para um céu azul, adornado por fios de alta-tensão onde pousavam pardais sem pressa, entre varandas de apartamentos. Minhas preocupações estavam sendo sugadas a cada vez que chupava aquela bebida fresca por um canudo e contemplava as paisagens novas de sempre. Suspirei aliviada, paguei a conta e parti.